Com a (nem tão nova) Lei Antitruste brasileira marchando para o seu oitavo ano de vigência, pode-se dizer que o Brasil tem feito um excelente trabalho em implementar uma “cultura de concorrência” à prática de fusões e aquisições (M&A), tendo o instituído regime de controle prévio no Brasil atingido níveis de qualidade alinhados aos das principais jurisdições mundiais.
No Brasil, significa que aspectos antitruste são levados em consideração ainda no início das negociações de M&A, por exemplo, na redação de cláusulas contratuais que podem implicar a integração prematura de atividades entre as partes da operação e, consequentemente, resultar em significativas multas às empresas. Em operações internacionais, significa que os empresários reconhecem a necessidade de exame legal criterioso sobre a obrigatoriedade de notificação no Brasil ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).
A regra geral do duplo faturamento que torna obrigatória a apresentação de uma operação ao CADE já é bem conhecida: operações envolvendo um grupo econômico com faturamento registrado no Brasil de R$ 750 milhões e um outro grupo econômico com faturamento – também registrado no Brasil – de R$ 75 milhões.
Dúvidas surgem sobre a necessidade de apresentar ao CADE operações ocorridas no exterior que, ainda que se enquadrem na regra geral, ao menos em tese, não teriam efeitos no Brasil. Deseja o CADE analisar uma operação ocorrida inteiramente no exterior, e que não afeta o Brasil, somente porque as partes satisfazem a regra geral?
A própria Lei Antitruste brasileira já traz alguma indicação para responder a essa pergunta, ao estabelecer que ela se aplica “às práticas cometidas no todo ou em parte no território nacional ou que nele possam produzir efeitos”.
Assim, a conclusão possível é que o CADE exercerá sua jurisdição sempre que houver a demonstração da incidência de efeitos (ainda que potenciais) no Brasil (“Teoria dos Efeitos”). Trata-se, assim, de um “teste de efeitos locais”, que é o principal aspecto a ser considerado para analisar a necessidade de notificação ao CADE de operações ocorridas no exterior. A parte simples da identificação de efeitos no Brasil é a situação em que a empresa-alvo tenha ativos ou entidades legais em território brasileiro ou ainda que tenha receitas registradas no Brasil, mesmo que somente através de exportações, independentemente de seus valores.
A questão se complica, pois a Lei Antitruste não estabelece, de maneira expressa, as regras para a aplicação desse teste em potencial e/ou eventuais exceções. Como, então, determinar se uma operação realizada no exterior deve ser notificada no Brasil ou não?
Em situações em que a operação é ocorrida inteiramente no exterior (foreign-to-foreign) ou em que haja criação de joint ventures no exterior para desenvolver produtos ou negócios que não serão vendidos ao Brasil, a análise sobre a potencialidade dos efeitos está relacionada ao segmento afetado por ela. A pergunta que se coloca é: pode a operação em questão afetar de alguma forma o mercado brasileiro? Note-se que essa análise não é, a rigor, de efeitos anticompetitivos – essa é uma análise do mérito da operação a ser feita em um momento posterior – mas de onde a operação produzirá seus efeitos – ou seja, onde o negócio em questão atuará.
O CADE já teve a oportunidade de se manifestar sobre a sua jurisdição extraterritorial em atos de concentração entre empresas estrangeiras. Os casos identificados permitem tirar algumas conclusões relevantes a respeito da necessidade de notificar operações no Brasil ocorridas inteiramente no exterior. Em especial:
- Se os produtos, negócios ou serviços envolvidos são, já foram, ou serão vendidos no Brasil;
- Se a segmentação geográfica de um hipotético mercado relevante seria nacional ou internacional;
- Se o mercado nacional é abastecido com produtos importados.
Uma operação que resulte em resposta negativa à maioria das perguntas acima provavelmente não passaria pelo teste de efeitos no Brasil, e teria chance razoável de não ser conhecida pelo CADE. Entretanto, a ausência de uma orientação oficial da autoridade segue exigindo uma análise criteriosa dos especialistas da área no caso a caso.
Experiência internacional
Nos Estados Unidos, o Hart-Scott-Rodino Act (HSR) permite que aquisições de ativos no exterior sejam isentas da necessidade legal de notificação caso os ativos resultantes da operação tenham gerado menos de US$ 84,4 milhões em vendas nos EUA ou aos EUA no ano fiscal mais recente. Ou seja, ao contrário do Brasil, que adotou a “Teoria de Todos os Efeitos” (quaisquer efeitos mesmo se muito limitados e ainda que potenciais), os Estados Unidos estabeleceram uma espécie de “Doutrina de Efeitos Mínimos”, uma disciplina mais elaborada em não desejar analisar, sob a ótica antitruste, operações no exterior cujos ativos não tenham determinado patamar de vendas nos EUA.
No âmbito de controle de estruturas, a Comissão Europeia, nos termos da Council Regulation (EC) No. 139/2004 – EC Merger Regulation, prevê a aplicabilidade de sua jurisdição em todos os atos de concentração de dimensão comunitária que atinjam determinados parâmetros quantitativos, os quais são estabelecidos tendo por base o volume de negócios das empresas. Há exceções de notificação, como joint-ventures não consideradas “plenas”, ou full-function aplicáveis a operações em geral que também poderiam ser utilizadas para justificar a não apresentação de uma operação envolvendo partes que atinjam os critérios de faturamento na Europa.
Há que se observar que grande parte da doutrina e da jurisprudência defende que os efeitos devem necessariamente ser previsíveis, imediatos e substanciais, ou seja, a probabilidade de que os efeitos venham a ocorrer deve ser real e efetiva.
A legislação brasileira, não exigindo expressamente que o efeito no território brasileiro de determinada operação seja consubstanciado para que seja possível a incidência da jurisdição do CADE, adota postura mais extensiva que EUA e União Europeia. Em nossas interlocuções com advogados especialistas em antitruste dessas jurisdições, vemos que operações semelhantes às de notificação obrigatória ao CADE não assim o são nessas jurisdições.
Ainda que se reconheça que a jurisprudência do CADE quanto à questão tenha evoluído significativamente desde a promulgação da Lei n° 12.529/2011, é desejável uma maior previsibilidade, baseada em critérios objetivos para além da regra geral do duplo faturamento.
Tendo em vista que a Lei Antitruste brasileira se absteve de definir com precisão ou de restringir o termo “efeitos”, há dúvidas em determinados casos se certa operação internacional gera a obrigatória notificação ao CADE.
Enquanto se aguarda que o CADE analise esse assunto mais a fundo e emita um entendimento positivado a respeito, ainda se exige uma análise cuidadosa e de especialistas na área de cada caso concreto.
Fonte: Jota.com