Créditos de imagem: Pexels
Como os preços de transferência vem sendo influenciados pela prolongada pandemia de coronavírus? Com o recrudescimento do vírus causado pela flexibilização do isolamento social, desemprego crescente e bruscas oscilações na oferta e demanda por bens e serviços, os preços adotados em transações entre países sofreram oscilações que, se não promoverem ajustes, podem aumentar os custos e despesas das empresas multinacionais. As regras de arm’s lenght principle, estabelecidas pela OCDE, são recomendadas para o caso de uma “situação econômica normal”, conceito que pode encontrar problemas em um ano marcado pela pandemia, devido aos fatores descritos nos parágrafos abaixo[1].
Mas primeiramente, é necessário falar sobre os preços de transferência (transfer pricing, no original), métodos de controle de preços adotados em transações internacionais entre empresas de um mesmo grupo econômico. Estes “preços de controle” acompanham a globalização do meio empresarial vivenciada nas últimas décadas, e também influenciam o planejamento tributário de uma empresa, pois reduzem despesas quando são economicamente eficientes. Idealmente, devem ser compatíveis com o valor real dos produtos comercializados, de modo a evitar a sonegação fiscal por meio do super ou do subfaturamento de preços.
Para facilitar as transações, é necessário harmonizar, entre países diferentes, as regras que determinam o cálculo do preço de transferência. Para tanto, a OCDE, entidade internacional, adota um método único, internacionalmente aceito, para o cálculo de preços: o arm’s lenght principle, encontrado no artigo 9 da Model Tax Convention da OCDE, mas não incorporado pela legislação brasileira, pois o país não é membro da organização. Nele, empresas que controlam e/ou administram outras, localizadas em outro país, devem registrar seus lucros, ao fazerem uma transação comercial, da mesma forma que o fariam caso se tratassem de duas empresas plenamente independentes entre si. [2]
O método de arms lenghts principle, adotado por muitos países, é utilizado para comparar os lucros obtidos em duas transações internacionais distintas. Para que se possa aplicar este método, os dados das empresas comparadas devem estar disponíveis, mas um dos efeitos negativos da pandemia é desatualizar rapidamente os dados e relatórios mais recentes, divulgados publicamente por uma empresa ao final de cada um de seus exercícios financeiros.
Como os resultados financeiros de uma empresa são divulgados no ano seguinte, a sociedade que busca ajustar seus preços de transferência poderá se encontrar no escuro, em relação aos dados de outras empresas. Outro problema é o fato de que, quando há prejuízo no balanço financeiro de uma propriedade, a comparação dos resultados obtidos em transações distintas torna-se inviável. Se não houve lucro nas operações de compra e venda, como estimar e comparar os valores das operações comerciais entre partes relacionadas?
Neste cenário, cabe analisar quais fatores poderiam as multinacionais apoiar-se em 2020, para ajustar seus preços de transferência. Considerando que o preço é determinado em operações intragrupo, possíveis respostas a pandemia poderão ser a descentralização das entidades membros do grupo ou a renegociação de seus contratos, observando-se o exemplo de negociações entre empresas já independentes entre si.
Já as perdas financeiras provocadas pelo isolamento social, como por exemplo a queda das vendas de produtos no varejo, podem ser mitigadas por meio de empréstimos cedidos às empresas subsidiárias, que interagem diretamente com o consumidor, fornecidos por suas controladoras residentes em outros países. Nesta hipótese, tais empréstimos seriam dentro de um mesmo grupo econômico, e portanto, não podem ser ignorados no momento dos ajustes[3].
Outro dado a ser considerado na determinação do preço de transferência é o possível aumento da tributação digital incidente sobre a empresa. O isolamento social forçado também teve como efeito a aceleração dos processos já vigentes de digitalização de diversos setores econômicos, como a indústria de restaurantes, que rapidamente substituiu refeições presenciais por entregas a domicílio, muitas vezes mediante aplicativos.
Em reação, alguns países, como a França, já instituíram a tributação sobre serviços exclusivamente digitais a nível nacional, ou planejam fazê-lo até o fim de 2020. Cerca de 140 membros da OCDE já buscam reescrever suas regras fiscais para, sobretudo, taxar as grandes provedoras de serviços pela internet, como Google, Amazon, Apple, etc[4].
Embora o governo norte americano tenha ameaçado retaliações econômicas a estes países, por alegadas violações ao princípio da livre concorrência, tais projetos seguem firmes, de modo que empresas multinacionais podem considerar possíveis novos tributos sobre seus ajustes de preço.
Em relação a empresas brasileiras, a redefinição do preço de transferência pode ser ainda mais nebulosa, pois a legislação nacional não adota muitas das recomendações da OCDE.[5] Ao invés do arm’s lenght principle, são adotados parâmetros mínimos e máximos para os preços praticados em importações, exportações e empréstimos entre empresas coligadas entre si.
Não há requerimento expresso, pelas regulações brasileiras, de que empresas relacionadas conduzam suas operações da mesma maneira que as independentes. Assim, multinacionais que atuam no Brasil muitas vezes precisam ajustar seus preços de transferência em padrões distintos do arm’s lenght principle, incorrendo em mais custos, apenas para evitar a dupla tributação com os tributos brasileiros.
Entretanto, houve esforços, nos últimos anos, para adequar as regras brasileiras aos padrões internacionais da OCDE, buscando rever suas regras de preços de transferência. Desde 2013, o Brasil comprometeu-se a combater a dupla tributação por meio da adesão ao projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), praticado pelos membros da OCDE e pelos países que nela desejam ingressar. Entretanto, questões ligadas a pandemia, que provocou no mundo, após eclodir, impactos econômicos imediatos, não serão solucionadas por revisões das regras de preços que ocorrerão a médio de longo prazo.
A presença de tratados internacionais é especialmente relevante no contexto da pandemia de coronavírus. Como discutido previamente, a ausência de informações atualizadas e confiáveis, causadas pelas mudanças econômicas mais velozes que o normal, pode implicar na ausência de tempo para se adotar o cálculo de preços praticado pela Legislação brasileira.
Logo, uma saída possível seria que transações com empresas brasileiras adotassem as disposições de tratados internacionais, caso eles sejam aplicáveis, para aplicar as regras do arm’s lenght principle em sobreposição as brasileiras, possivelmente facilitando as transações, já que se trata de um padrão aceito internacionalmente. Porém, o Brasil não adota tratado de não bitributação com alguns países com os quais é forte parceiro comercial, como os Estados Unidos.
Em conclusão a todos os dados apresentados, a adaptação dos preços de transferência ao “novo normal” de 2020 está a cargo de cada empresa, com o auxílio da OCDE, que vem publicando documentos, após compilar dados, que sugerem estratégias a serem adotadas por governos e por entidades privadas, em matéria de política fiscal.
Entretanto, a organização ainda não fez nenhuma publicação que altere as regras do arm’s length principle previstas no Artigo 9 da Model Tax Convention. Portanto, recomenda-se que cada multinacional estude o mercado e a literatura sobre preços de transferência, de modo a adotar a estratégia mais favorável para obter lucros, ou ao menos mitigar as perdas, neste ano único que aparenta ter vindo para alterar as regras da economia e da sociedade.
[1] Disponível em: <https://rolimvlc.com/informes/covid-19-traz-impactos-nos-ajustes-de-precos-de-transferencia/>.
[2] Disponível em: <https://oecdobserver.org/news/archivestory.php/aid/670/Transfer_pricing:_Keeping_it_at_arms_length.html>.
[3] Disponível em: <https://www.taxnotes.com/tax-notes-international/transfer-pricing/transfer-pricing-aspects-consider-during-covid-19/2020/08/17/2cs3n?highlight=transfer%20pricing>.
[4] Disponível em: <https://www.reuters.com/article/us-france-digital-tax/france-to-impose-digital-tax-this-year-regardless-of-any-new-international-levy-idUSKBN22Q25B>.
[5] Disponível em: <https://www.pwc.com/gx/en/international-transfer-pricing/assets/brazil.pdf>.
GABRIEL DE SÁ BALBI CERVIÑO – Advogado de Direito Tributário. Atualmente, integra o quadro de um LLM de Direito Tributário Internacional, na Universidade de Nova York.
Fonte: JOTA
Data da publicação: 01 de setembro de 2020.